A Amélia tinha uma neurose obsessiva-compulsiva. Quadro típico, de livro. O marido - um poço de paciência - acompanhava-a sempre à consulta. Ela sentava-se à minha frente e ficava, inexpressiva, a chupar a própria lingua, enquanto o marido me fazia as queixas habituais. Que ela dormia mal, que não tinha vontade de fazer nada em casa, que se recusava a sair, que raramente falava, que passava os dias a chupar a lingua.
Já se haviam tentado todos os tipos de terapêuticas medicamentosas, já havia consultado diversos psiquiatras, já tinha estado internada em algumas clínicas. Sem grandes resultados.
A terapia comportamental fora tentada durante algum tempo e a Amélia conseguiu deixar de chupar na língua e passou a chuchar num lenço. Mas não podia ser um lenço qualquer. Os com rendinhas arranhavam-lhe a língua, os de seda não empapavam a saliva em condições e os de papel estavam fora de questão por razões óbvias. Ela não tinha iniciativa nem para levar o comer à boca, quanto mais para passar o dia a cuspir pedacinhos de papel. Tinham que ser lenços de popeline, bem resistentes e com capacidade para alguns litros de cuspo. O marido deve-lhe ter comprado dezenas de lenços, mas a obsessão da Amélia dava conta deles todos. Acabou por regressar à língua. Assim como assim, a língua não se gasta, está sempre limpa e sempre à mão (neste caso, sempre à boca).
Talvez a falta de afecto na infância a tivesse feito regredir à fase oral. E como o uso da chucha seria socialmente reprovável, escolhera a língua como objecto da sua neurose.
Tudo explicado?... Talvez não...
De um momento para o outro, o marido da Amélia entra em insuficiência renal aguda e morre.
Quando soube da notícia, pensei: “coitada da Amélia!... E agora, o que vai ser dela?... Vai piorar, de certeza...”
Mentira.
Pouco tempo depois da morte do marido, lá apareceu a Amélia, toda de preto e - espanto! - não chupava na língua!
Com uma desenvoltura que nunca lhe vira, contou-me que, com a morte do marido, decidira que tinha que fazer alguma coisa por ela própria, já que agora não tinha ninguém que cuidasse dela.
E a língua?...
Já não queria saber da língua para nada. Arranjara um substituto bem mais produtivo: dedicara-se ao crochet. Passava os dias sentada no sofá da sala, televisão ligada, fazendo crochet sem parar, compulsivamente, obsessivamente. E ele eram toalhas de mesa, ele eram naperons, ele eram colchas. E até conseguira arranjar uma senhora que tinha uma capelista e que lhe vendia os seus trabalhos. E como prova dos seus dotes, ofereceu-me duas pegas para a cozinha, todas em crochet multicolor.
E assim se passaram mais alguns anos, com a Amélia aguentando-se com um único antidepressivo e um tranquilizante e montanhas de novelos Ancora.
Até que certo dia me apareceu muito agitada, exibindo uma ferida muito feia no bordo da língua.
“O que se passou, Amélia?” - perguntei - “Não me diga que voltou a chupar na língua?...”
Foi então que ela me contou o drama da noite anterior. Como era hábito, sentou-se no sofá, em frente ao televisor e atirou-se freneticamente ao crochet. As horas foram passando e aproximava-se a meia noite quando a Amélia acabou um novelo. Dirigiu-se à cestinha de costura para se abastecer e - desgraça! - descobriu que se lhe haviam acabado as munições!... Não tinha mais novelos!...
Entrou em pânico, como se compreende e, apesar do tranquilizante, não conseguiu pregar olho, tendo passado toda a noite a chupar na lingua, até às 9 horas da manhã, quando a capelista abriu as portas e, como um furacão, a Amélia se precipitou lá para dentro, em busca de mais novelos. E naquela noite de insónia e desespero, chupara na lingua com tal denodo e abnegação que arrancara positivamente um pedaço da mesma.
Aqui está uma excelente razão para se começarem a vender novelos Ancora nas farmácias de serviço...
zagadka!!
terça-feira, 23 de fevereiro de 2010
obsessão
in "Cinquenta Histórias Pouco Clínicas mas Muito Cínicas", 1998
domingo, 21 de fevereiro de 2010
Leitura excelente!!
NO CAMINHO COM MAIAKÓVSKI
Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.
Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na Segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.
Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne a aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.
Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.
E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!
Eduardo Alves da Costa
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.
Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na Segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.
Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne a aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.
Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.
E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!
Eduardo Alves da Costa
Hilst, one more time!
Vamo brincá de ficá bestando e fazê um cafuné no outro e sonhá que a gente enricô e fomos todos morar nos Alpes Suíços e tamo lá só enchendo a cara e só zoiando? Vamo brincá que o Brasil deu certo e que todo mundo tá mijando a céu aberto, num festival de povão e dotô? Vamo brincá que a peste passô, que o HIV foi bombardeado com beagacês, e que tá todo mundo de novo namorando? Vamo brincá de morrê, porque a gente não morre mais e tamo sentindo saudade até de adoecê? E há escola e comida pra todos e há dentes na boca das gentes e dentes a mais, até nos pentes? E que os humanos não comem mais os animais, e há leões lambendo os pés dos bebês e leoas babás? E que a alma é de uma terceira matéria, uma quântica quimera, e alguém lá no céu descobriu que a gente não vai mais pro beleléu? E que não há mais carros, só asas e barcos, e que a poesia viceja e grassa como grama (como diz o abade), e é porreta ser poeta no Planeta? Vamo brincá
de teta
de azul
de berimbau
de doutora em letras?
E de luar? Que é aquilo de vestir um véu todo irisado e rodar, rodar...
Vamo brincá de pinel? Que é isso de ficá loco e cortá a garganta dos otro?
Vamo brincá de ninho? E de poesia de amor?
nave
ave
moinho
e tudo mais serei
para que seja leve
meu passo
em vosso caminho.*
Vamo brincá de autista? Que é isso de se fechá no mundão de gente e nunca mais ser cronista? Bom-dia, leitor. Tô brincando de ilha.
* Trovas de muito amor para um amado senhor - SP: Anhambi, 1959.
Hilda Hilst
de teta
de azul
de berimbau
de doutora em letras?
E de luar? Que é aquilo de vestir um véu todo irisado e rodar, rodar...
Vamo brincá de pinel? Que é isso de ficá loco e cortá a garganta dos otro?
Vamo brincá de ninho? E de poesia de amor?
nave
ave
moinho
e tudo mais serei
para que seja leve
meu passo
em vosso caminho.*
Vamo brincá de autista? Que é isso de se fechá no mundão de gente e nunca mais ser cronista? Bom-dia, leitor. Tô brincando de ilha.
* Trovas de muito amor para um amado senhor - SP: Anhambi, 1959.
Hilda Hilst
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