terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

obsessão

A Amélia tinha uma neurose obsessiva-compulsiva. Quadro típico, de livro. O marido - um poço de paciência - acompanhava-a sempre à consulta. Ela sentava-se à minha frente e ficava, inexpressiva, a chupar a própria lingua, enquanto o marido me fazia as queixas habituais. Que ela dormia mal, que não tinha vontade de fazer nada em casa, que se recusava a sair, que raramente falava, que passava os dias a chupar a lingua.
Já se haviam tentado todos os tipos de terapêuticas medicamentosas, já havia consultado diversos psiquiatras, já tinha estado internada em algumas clínicas. Sem grandes resultados.
A terapia comportamental fora tentada durante algum tempo e a Amélia conseguiu deixar de chupar na língua e passou a chuchar num lenço. Mas não podia ser um lenço qualquer. Os com rendinhas arranhavam-lhe a língua, os de seda não empapavam a saliva em condições e os de papel estavam fora de questão por razões óbvias. Ela não tinha iniciativa nem para levar o comer à boca, quanto mais para passar o dia a cuspir pedacinhos de papel. Tinham que ser lenços de popeline, bem resistentes e com capacidade para alguns litros de cuspo. O marido deve-lhe ter comprado dezenas de lenços, mas a obsessão da Amélia dava conta deles todos. Acabou por regressar à língua. Assim como assim, a língua não se gasta, está sempre limpa e sempre à mão (neste caso, sempre à boca).
Talvez a falta de afecto na infância a tivesse feito regredir à fase oral. E como o uso da chucha seria socialmente reprovável, escolhera a língua como objecto da sua neurose.
Tudo explicado?... Talvez não...
De um momento para o outro, o marido da Amélia entra em insuficiência renal aguda e morre.
Quando soube da notícia, pensei: “coitada da Amélia!... E agora, o que vai ser dela?... Vai piorar, de certeza...”
Mentira.
Pouco tempo depois da morte do marido, lá apareceu a Amélia, toda de preto e - espanto! - não chupava na língua!
Com uma desenvoltura que nunca lhe vira, contou-me que, com a morte do marido, decidira que tinha que fazer alguma coisa por ela própria, já que agora não tinha ninguém que cuidasse dela.
E a língua?...
Já não queria saber da língua para nada. Arranjara um substituto bem mais produtivo: dedicara-se ao crochet. Passava os dias sentada no sofá da sala, televisão ligada, fazendo crochet sem parar, compulsivamente, obsessivamente. E ele eram toalhas de mesa, ele eram naperons, ele eram colchas. E até conseguira arranjar uma senhora que tinha uma capelista e que lhe vendia os seus trabalhos. E como prova dos seus dotes, ofereceu-me duas pegas para a cozinha, todas em crochet multicolor.
E assim se passaram mais alguns anos, com a Amélia aguentando-se com um único antidepressivo e um tranquilizante e montanhas de novelos Ancora.
Até que certo dia me apareceu muito agitada, exibindo uma ferida muito feia no bordo da língua.
“O que se passou, Amélia?” - perguntei - “Não me diga que voltou a chupar na língua?...”
Foi então que ela me contou o drama da noite anterior. Como era hábito, sentou-se no sofá, em frente ao televisor e atirou-se freneticamente ao crochet. As horas foram passando e aproximava-se a meia noite quando a Amélia acabou um novelo. Dirigiu-se à cestinha de costura para se abastecer e - desgraça! - descobriu que se lhe haviam acabado as munições!... Não tinha mais novelos!...
Entrou em pânico, como se compreende e, apesar do tranquilizante, não conseguiu pregar olho, tendo passado toda a noite a chupar na lingua, até às 9 horas da manhã, quando a capelista abriu as portas e, como um furacão, a Amélia se precipitou lá para dentro, em busca de mais novelos. E naquela noite de insónia e desespero, chupara na lingua com tal denodo e abnegação que arrancara positivamente um pedaço da mesma.
Aqui está uma excelente razão para se começarem a vender novelos Ancora nas farmácias de serviço...

in "Cinquenta Histórias Pouco Clínicas mas Muito Cínicas", 1998

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Leitura excelente!!


li quando tinha uns 15 anos, ganhei da minha mãe que na época, era sócia do círculo do livro (que aliás imprimiu a obra com esta sobrecapa aí, da foto. não há o que falar... é preciso ler, para crer...

NO CAMINHO COM MAIAKÓVSKI

Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na Segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne a aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão

é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!

Eduardo Alves da Costa

Hilst, one more time!

Vamo brincá de ficá bestando e fazê um cafuné no outro e sonhá que a gente enricô e fomos todos morar nos Alpes Suíços e tamo lá só enchendo a cara e só zoiando? Vamo brincá que o Brasil deu certo e que todo mundo tá mijando a céu aberto, num festival de povão e dotô? Vamo brincá que a peste passô, que o HIV foi bombardeado com beagacês, e que tá todo mundo de novo namorando? Vamo brincá de morrê, porque a gente não morre mais e tamo sentindo saudade até de adoecê? E há escola e comida pra todos e há dentes na boca das gentes e dentes a mais, até nos pentes? E que os humanos não comem mais os animais, e há leões lambendo os pés dos bebês e leoas babás? E que a alma é de uma terceira matéria, uma quântica quimera, e alguém lá no céu descobriu que a gente não vai mais pro beleléu? E que não há mais carros, só asas e barcos, e que a poesia viceja e grassa como grama (como diz o abade), e é porreta ser poeta no Planeta? Vamo brincá

de teta

de azul

de berimbau

de doutora em letras?

E de luar? Que é aquilo de vestir um véu todo irisado e rodar, rodar...

Vamo brincá de pinel? Que é isso de ficá loco e cortá a garganta dos otro?

Vamo brincá de ninho? E de poesia de amor?

nave

ave

moinho

e tudo mais serei

para que seja leve

meu passo

em vosso caminho.*

Vamo brincá de autista? Que é isso de se fechá no mundão de gente e nunca mais ser cronista? Bom-dia, leitor. Tô brincando de ilha.



* Trovas de muito amor para um amado senhor - SP: Anhambi, 1959.

Hilda Hilst